Ontem, 5 de junho de 2025, o líder da oposição israelense ao governo de Benjamin Netanyahu, Avigdor Lieberman, acusou o premiê do Likud de permitir o armamento de gangues criminosas em Gaza para instrumentalizá-las e minar a autoridade do Hamas, em meio a uma guerra genocida que já dura mais de um ano na qual as forças israelenses foram incapazes de alcançar seus objetivos. Segundo ele, com a anuência do Shin Bet (a agência de inteligência militar de Israel), Netanyahu estaria diretamente cooperando e armando gângsteres com afiliações mais preocupantes que meramente práticas criminosas comuns:
“Israel forneceu fuzis de assalto e armas leves para famílias criminosas em Gaza, sob as ordens de Netanyahu […] As armas estão sendo transferidas para criminosos e infratores e direcionadas a Israel […] Na minha opinião, não passou pela aprovação do gabinete. O chefe do Shin Bet sabe, não tenho certeza se o chefe de gabinete sabe. Estamos falando do equivalente ao Isis em Gaza. [Middle East Eye, 2025]
As alegações de Lieberman foram amparadas por imagens que surgiram recentemente na internet, com milícias portando armamento pesado, equipamento israelense e patches com a bandeira palestina e o título “Serviço Anti-Terror”. A grande, mas não nova ironia, é que essas gangues que formam as fileiras desses “grupos anti-terror” não são apenas mafiosas, envolvidas não apenas com práticas ilegais como tráfico extorsão, mas têm origem em membros células de grupos terroristas infames, como o ISIS/Daesh e outros grupos que são associados a eles. Ou seja, Lieberman não estava brincando ou fazendo hipérbole quando falou que essas gangues “são o equivalente do ISIS em Gaza.”
Desde meses atrás há relatos de que Israel está apoiando ou fazendo vista grossa a gangues armadas que saqueiam armazéns de ajuda humanitária e alimentos em Gaza e se aproveitam da penúria da própria população. Em novembro do ano passado, um memorando interno da ONU obtido pelo Washington Post revelou que gangues “podem estar se beneficiando de uma benevolência passiva, se não ativa” ou “proteção” das tropas israelenses. Um desses líderes de gangue, de acordo com o memorando, estabeleceu um “complexo militar” em uma área “restrita, controlada e patrulhada” pelos militares israelenses.
Um dos cabeças de uma dessas gangues, que hoje desponta como o possível líder da milícia colaboracionista que vem se formando é Yasser Abu Shahab, membro de um clã proeminente da região do Sul de Gaza. Abu Shabab era conhecido em Gaza por sua oposição ao Hamas e já foi preso por contrabando de narcóticos. Ele também mantinha uma conexão direta com o ISIS na vizinha península do Sinai.
Yasser Abu Shahab
Preso pelo Hamas por suas atividades ilegais e associações com o ISIS, conseguiu escapar após bombardeios israelenses atingirem a prisão onde estava. A partir daí, Abu Shabab rapidamente começou a montar uma força militante com pelo menos 100 homens, muitos dos quais também já haviam sido presos e tinham ligações conhecidas com o ISIS e grupos ligados à Al-Qaeda, como Ansar al-Islam, um grupo salafi-jihadista inimigo do Hamas dentro de Gaza que, em 2007, sequestrou o jornalista escocês Alan Johnston, da BBC. Johnston viria a ser libertado e entregue ao Hamas para seu retorno ao Reino Unido 114 dias depois.
Outro gângster supostamente apoiado por Israel é Shadi al-Sufi, um assassino e traficante de drogas condenado à morte pelo Hamas. Em 2020, ele assassinou Jabr Al-Qiq, um comandante sênior das ‘Brigadas Abu Ali Mustafa’ da Frente Popular de Libertação da Palestina, grupo marxista-leninista aliado ao Hamas. Mais tarde, ele teria trabalhado com contatos do ISIS para escapar para o Sinai. Esta parece ser agora a estratégia israelense: nomear essas gangues criminosas como uma força de segurança substituta e legítima para suplantar o governo do Hamas, no estilo “dividir para conquistar.” Mas se engana quem pensa que isso é alguma novidade israelense.
Palestinos participam do funeral de Jabr al-Qiq, em Rafah, sul da Faixa de Gaza, em 13 de julho de 2020.
Israel, ao longo de décadas, tem adotado estratégias de manipulação política e militar para enfraquecer seus adversários, causar caos entre eles e promover seus interesses através de manipulações escusas. Uma dessas macabras estratégias tem sido o apoio direto indireto a grupos extremistas na Palestina e nos países próximos. Essa abordagem remonta à época da criação do Estado de Israel, no final da década de 1940, quando divisões religiosas e étnicas entre grupos árabes foram exploradas. Nos anos mais recentes, Israel tem-se usado de táticas semelhantes ao apoiar financeiramente e militarmente facções radicais e “baderneiras” como a Al-Nusra, o ISIS (ou Daesh) e até mesmo o Hamas e outros grupos militantes palestinos menores, para criar conflitos internos e destruição entre aqueles que podem um dia se opor a seu projeto expansionista que cada vez mais abocanha partes do Oriente Médio.
Um desses exemplos recentes pôde ser observado durante a Guerra Civil Síria, iniciada em 2012 a partir de protestos contra o ditador Bashar al-Assad, aliado histórico da República Islâmica do Irã e do movimento libanês do Hezbollah – que por sua vez são hostis a Israel.
Aproveitando-se da presença de elementos jihadistas dentre as forças que se opunham a Assad, Israel adotou uma estratégia ambígua em relação a certos grupos rebeldes encabeçados por radicais de inspiração salafi-wahhabi como a Frente Al-Nusra (afiliada à Al-Qaeda), fornecendo ajuda humanitária e suporte militar nas Colinas de Golã, visando enfraquecer o regime de Assad e seu aliado, o Hezbollah.
Relatos de 2015 indicam que Israel realizou ataques seletivos contra posições sírias e do Hezbollah e do governo Sírio e milícias xiitas apoiadas pelo Irã, enquanto poupava áreas controladas pelos terroristas da Al-Nusra, além de tratar combatentes jihadistas feridos em hospitais israelenses –indícios óbvios de cooperação tácita, embora o governo israelense negasse qualquer apoio ou “favoritismo” com certos grupos, alegando focar apenas na contenção da influência iraniana; ou seja: uma tentativa de prolongar o conflito sírio para evitar o fortalecimento do eixo xiita, notadamente anti-Israel e pró-Palestina.
De forma similar, durante o auge do autointitulado Estado Islâmico (ISIS/Daesh), que chegou a oprimir boa parte da Síria e também do Iraque (e que, como a Al-Nusra, se originou dentre as fileiras da Al-Qaeda), Israel manteve uma postura ambígua: enquanto oficialmente classificava o grupo como “ameaça”, permitia que seus combatentes operassem perto das fronteiras sem empecilhos e até tratava feridos do ISIS em seus hospitais, o mesmo modus operandi com relação à Al-Nusra. Documentos e depoimentos sugerem que o Mossad via o ISIS como ferramenta para enfraquecer Assad, o Irã e o Hezbollah, embora Israel negasse acusações de apoio logístico, afirmando limitar-se a ajuda humanitária – ainda que direcionada a prováveis terroristas.
O ISIS, por sua vez, nunca atacou Israel à exceção de uma vez – vindo a, incrivelmente, pedir desculpas por isso. Você não leu errado: o grupo terrorista mais cruento da história recente teria atacado, “sem querer”, forças israelenses uma vez, e pedido desculpas logo em seguida. Pelo menos é o que nos diz o ex-ministro israelense Bogie Yaalon:
“[…] Na maioria das vezes, os disparos partem de regiões sob o controle do regime [de Assad]. Mas uma vez os disparos partiram de posições do ISIS, e o grupo imediatamente se desculpou.” [SILVERSTEIN, Richard (2017)]
O ataque a que ele se refere foi noticiado pela mídia israelense. Mas o pedido de desculpas do ISIS não foi. Foi suprimido, certamente porque um pedido de desculpas do ISIS constrangeria tanto Israel quanto os terroristas, expondo uma cooperação que ambos, por razões óbvias, preferem manter em segredo hermético.
Nem mesmo o Hamas, atual nêmesis de Israel em Gaza, ficou imune a essa instrumentalização. Nos anos 1980, Israel tolerou — e, segundo algumas fontes, ativamente financiou — o crescimento do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) como um movimento religioso rival à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), então liderada pelo grupo nacionalista e secular al-Fatah. A ideia era enfraquecer a unidade palestina e minar a autoridade de Yasser Arafat e da Autoridade Palestina que ele ajudou a construir.
Documentos de arquivos israelenses e relatos de ex-oficiais, como o ex-consultor de segurança Avner Cohen, confirmam que Israel e suas agências, como o Shin Bet (inteligência militar) e o Mossad (inteligência) permitiu que o Hamas arrecadasse fundos e estabelecesse instituições de caridade em Gaza e na Cisjordânia, vendo-o como um contrapeso mais maleável que a OLP. Avner Cohen, ex-funcionário do Ministério da Defesa de Israel já falou diversas vezes sobre o apoio e tolerância do regime sionista ao Hamas:
“O governo israelense, incluindo o Shin Bet [serviço de segurança], viu o Hamas como um problema menor comparado à OLP. Permitimos que eles construíssem mesquitas, escolas e redes sociais, pensando que isso dividiria os palestinos.” [COHEN, Avner (2010) The Worst-Kept Secret: Israel’s Bargain with the Bomb”, Cap. 4]
Do mesmo modo, em 1986, um ano antes da fundação oficial do Hamas pelo Sheykh Ahmed Yassin, o chefe do escritório do New York Times em Jerusalém, David K. Shipler, revelou como Israel apoiou o movimento islâmico na Faixa de Gaza que daria origem ao Hamas:
“Em 1981, o Brigadeiro-General Yitzhak Segev, governador militar israelense de Gaza, me disse que estava doando dinheiro à Irmandade Muçulmana, a precursora do Hamas, sob instruções das autoridades israelenses. O financiamento visava desviar o poder dos movimentos comunistas e nacionalistas palestinos em Gaza, que Israel considerava mais ameaçadores do que os fundamentalistas.” [Letter to the Editor (2021) Casting Blame in the Israel-Gaza Conflict. The New York Times]
Essa política de fragmentação ficou ainda mais evidente após a vitória do Hamas nas eleições palestinas de 2006. Israel e os EUA pressionaram pelo isolamento do grupo, enquanto mantinham canais indiretos de comunicação, incluindo negociações para trocas de prisioneiros. Alguns analistas argumentam que a divisão entre o Hamas em Gaza e o Fatah na Cisjordânia tem sido benéfica a Israel, dividindo os palestinos em duas frentes que são atacados de maneira concomitante por Israel, minando a possibilidade de uma frente única contra os assédios e a ocupação.
Esses casos exemplificam como Israel têm usado grupos extremistas e criminosos da pior espécie possível como peças e “idiotas úteis” em seu jogo geopolítico na região, que visa desestabilizar e destroçar ao máximo seus vizinhos, ao mesmo tempo que se vende para o resto do mundo como um oásis de paz, segurança e estabilidade frente ao caos e barbárie oriental que os cerca – caos e barbárie que eles mesmos ajudaram a criar e ajudam a manter.
Bibliografia:
- Letter to the Editor (2021) Casting Blame in the Israel-Gaza Conflict. The New York Times.
- COHEN, Avner (2010) The Worst-Kept Secret: Israel’s Bargain with the Bomb”.
- SILVERSTEIN, Richard (2017) Former Israeli Defense Minister Confirms Israeli Collaboration with ISIS in Syria. Richardsilverstein.com.
- SILVERSTEIN, Richard (2015) Israel’s Dangerous Game with Syrian Islamists. Richardsilverstein.com.
- SILVERSTEIN, Richard (2015) Syrian Killed in Attack by Golani Druze Was Islamist Fighter, Not Civilian as IDF Claimed. Richardsilverstein.com.
- Why Israel Created Hamas (2023) Swiss Policy Research. Swprs.org.
- AHMAR, Moonis (2023) How and Why Israel helped create Hamas?
- INLAKESH, Robert (2025) Israel-Backed Militias Linked to ISIS Loot Gaza Aid Under IDF Watch. The Unz Review, Unz.com
- Middle East Eye (2025) Israel opposition leader says Netanyahu arming ‘equivalent of Isis’ gangs in Gaza.
- The Cradle (2025) Israeli opposition leader says Netanyahu arming ‘ISIS-linked gangs’ in Gaza.
- McCARTHY, Rory (2007). “Hamas government acts to free kidnapped BBC man”. The Guardian.