Babur e Hernán: uma comparação do processo de conquista das Duas Índias

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A reflexão contrafactual, popularmente conhecida como “e se”, é uma ferramenta comum para explorar os caminhos não trilhados da história. Uma dessas especulações frequentes diz respeito à colonização das Américas: e se, em vez de europeus cristãos do século XV, fossem outras nações a desembarcar nestas costas? Essa reflexão já englobou os mais diversos povos: chineses, africanos, nórdicos e também muçulmanos. A suposição feita por muitos é que o padrão de genocídio indígena, a supressão cultural e a exploração teriam sido os mesmos. No entanto, a história contemporânea à conquista do México por Hernán Cortés oferece um contraponto fascinante: a conquista da Índia, também majoritariamente pagã, por Zahir-ud-Din Muhammad Babur, ou simplesmente Babur, fundador do Império Mogol. Uma análise comparativa, baseada nos próprios relatos dos conquistadores e no legado de suas conquistas, revela divergências profundas na abordagem da liberdade religiosa e cultural e no impacto sobre os povos conquistados.

Hernán Cortés, ao descrever sua chegada e suas interações no México, frequentemente enquadrava suas ações dentro de uma lógica de superioridade religiosa e civilizacional, inerente ao projeto colonial europeu. Suas cartas a Carlos V, conhecidas como La Relación, embora diplomaticamente redigidas para justificar seus atos e assegurar o favor real, revelam um conquistador que via os povos nativos e suas práticas religiosas como algo a ser subjugado e substituído na melhor das hipóteses, transformando o discurso em ação.

 

Cópia feita durante o período colonial mexicano de um retrato datado de 1525 de Hernán Cortés, capitão-general das tropas espanholas que entraram no México em 1519 e o conquistaram em 1521, e que também foi o primeiro governador da Nova Espanha. Com exceção de uma ilustração do artista alemão Cristoph Weiditz, esta é uma das três cópias conhecidas de retratos que provavelmente foram feitos durante a vida de Cortés. O autor é anônimo.

Um exemplo emblemático da abordagem de Cortés é o massacre de Cholula em 1519. Cortés justifica sua ação como preventiva, diante de uma suposta emboscada planejada pelos cholultecas e mexicas. Em sua segunda carta (1520), ele relata: 

E assim, por isso e pelos sinais que via, decidi prevenir antes de ser prevenido, e chamei alguns dos senhores da cidade dizendo que queria falar com eles, e os coloquei em uma sala, e enquanto isso fiz com que nosso pessoal estivesse preparado, e que ao disparar uma espingarda atingissem um grande número de índios que estavam junto ao aposento e muitos dentro dele. Assim foi feito, depois que reuni os senhores naquela sala, deixei-os amarrados, montei a cavalo e mandei disparar a espingarda, e demos-lhes tal golpe que, em poucas horas, morreram mais de três mil homens. [1]

Esta ação foi interpretada por contemporâneos, como Bartolomé de las Casas, como um ato de terror injustificado. A visão de Las Casas sobre Cholula corrobora a interpretação de que a violência não era apenas militar, mas também uma ferramenta de intimidação para facilitar a dominação. Ele descreve a estratégia espanhola como a de organizar massacres públicos para “aterrorizar aqueles povos mansos e gentis” (BRAUN, 2023, p. 637) [2]. Este padrão, argumenta-se, era parte integral da “etiqueta da atrocidade” da conquista espanhola, para usarmos o termo cunhado por G. Parker em seu The etiquette of atrocity: the laws of war in early modern Europe.

‘A Conquista de Cholula’ ca. 1670-1730. Oficina de Loz Gonzalez (1670-1730) – Museu Franz Mayer – México

O impacto da conquista espanhola nas Américas foi profundo e resultou em drásticas mudanças demográficas, culturais e linguísticas. As populações indígenas foram dizimadas por doenças, guerras e exploração, e suas estruturas sociais e religiosas foram sistematicamente desmanteladas ao ponto de algumas desaparecerem por completo. Harald E. Braun, em “Genocidal Massacres in the Spanish Conquest of the Americas”, aponta que o Massacre de Cholula e outros ocorridos na América espanhola podem ser considerados como “massacres genocidas” visando uma comunidade específica por causa de sua participação em um grupo maior, buscando a submissão e exploração do trabalho indígena. A imposição do cristianismo e da língua espanhola foi central nesse processo. Deixando explicito seu objetivo de apagar a existência dos nativos, Cortés diz:

“Se os pagãos não forem mais trazidos à luz pela coação, nós os faremos pagar uma pesada indenização pelo privilégio de permanecerem na escuridão e, sempre que sua oposição à disseminação da doutrina cristã entre eles passar da inércia para a atividade, um navio de guerra estará pronto para bombardear suas costas enquanto as tropas estiverem a postos para anexar uma província.” ― Hernán Cortés, Five Letters of Cortes to the Emperor: 1519 -1526

Enquanto isso, no mesmo período e no outro lado do mundo, Babur, um descendente de Tamerlão e Gengis Khan, conquistadores impiedosos de direito próprio, iniciava a fundação do Império Mogol na Índia. Seus diários, o Baburnama, oferecem um vislumbre de sua personalidade, suas ambições e suas políticas. O controverso Salman Rushdie, autor dos “versos satânicos”, na introdução à tradução de Wheeler M. Thackston do Baburnama, destaca: “Zahiruddin Muhammad Babur (1483-1530), o fundador do Império Mogol na Índia, é mais lembrado por três coisas: a história de sua morte, a controvérsia sobre sua mesquita e a extraordinária reputação do Baburnama, seu livro.” (Babur, The Baburnama, Thackston, p. VII). Falaremos brevemente sobre a controvérsia da mesquita mais abaixo.

Encontro entre Bābur e o sultão ʿAlī Mīrzā perto de Samarcanda, ilustração do Bābūr-nāmeh

Babur descreve sua chegada à Índia e suas interações com a população local com um olhar de observador e administrador, mais do que de um cruzado religioso buscando civilizar os “bárbaros”. Ele detalha a flora, a fauna, os costumes e as estruturas sociais da Índia com curiosidade. Apesar disso, em suas memórias ele também escreve sobre aspectos negativos que viu na Índia: 

O Hindustão é um país de poucos encantos. Seu povo não tem boa aparência; não há convívio social, nem fazer e receber visitas; não há genialidade e capacidade; não há boas maneiras; no artesanato e no trabalho não há forma ou simetria, método ou qualidade; não há bons cavalos, nem bons cães, nem uvas, melões-almiscarados ou frutas de primeira qualidade, nem gelo ou água fria, nem bom pão ou comida cozida nos bazares, nem banhos quentes, nem faculdades, nem velas, tochas ou castiçais. 

Embora a passagem acima seja em tom crítico, Babur também teceu uma série de elogios sobre a Índia, como sobre suas riquezas e até do ar que respirava. 

A política religiosa dos primeiros Mogóis, especialmente Babur e seu filho Humayun, foi caracterizada por uma notável liberalidade e tolerância, por vezes sendo chamado até mesmo de “liberal e secular”, como vemos no artigo “The Religious Policy Of Mughals: The Tale Of Conflict, Religion And Faith”. O artigo afirma que os mogóis seguiram a política de tolerância religiosa e permitiram que pessoas de diferentes religiões praticassem sua religião livremente. Além disso, Babur, muçulmano sunita seguidor da escola Hanafi de jurisprudência, não impôs suas crenças sobre outras pessoas. Em uma carta advertindo seu filho e herdeiro Humayun (1508 – 1556), o primeiro conquistador muçulmano mogol da Índia Babur (1483-1530), disse-lhe:

“Ó, meu filho! O reino do Hindustão está cheio de credos diversos. Louvado seja Deus, o Justo, o Glorioso, o Supremo, que lhe concedeu o Império. É certo que você, com o coração limpo de todo fanatismo religioso, deve aplicar a justiça de acordo com os princípios de cada comunidade e, em particular, abster-se do sacrifício de vacas; nesta forma reside a conquista dos corações das pessoas do Hindustão, e os súditos do reino irão, através deste favor real, ser dedicados a ti. E os templos e as moradas de adoração de todas as comunidades sob o domínio imperial, você não deve danificar. Espalhe a justiça para que o soberano se sinta feliz com os súditos e também os súditos com seu soberano. O progresso do Islã é mais eficaz pela espada da bondade de que pela espada da opressão. Ignore as disputas entre xiitas e sunitas; pois nelas reside a fraqueza do Islã. E reúna os súditos de diferentes crenças a maneira dos Quatro Elementos, para que o corpo político possa estar imune às diversas doenças. E lembre-se das ações de Hazrat Taimur Sahib Qiran (Timur/Tamerlão (1336-1405), Senhor da conjunção) para que você possa se tornar maduro em questões de Governo. E sobre nós é o dever de aconselhar. “

Mesmo quando Babur descreve atos de violência em suas conquistas, o contexto é geralmente militar, contra exércitos inimigos, e não massacres de civis com o intuito de conversão religiosa e apagamento de sua cultura. Por exemplo, no Baburnama, ao relatar a Batalha de Panipat, ele foca na estratégia militar e na derrota do exército de Ibrahim Lodi. A violência é inerente ao contexto militar e não direcionada à conversão da população ou massacres indiscriminados de civis, como não raramente vemos propagandistas hindutvas propagando hoje em dia. Veremos mais abaixo uma dessas descrições. Se levarmos em consideração que ambos Babur e Cortés estavam diante de sociedades onde, por exemplo, sacrifícios humanos eram comuns em suas religiões, porém em escala diferentes, isso se torna ainda mais revelador no quesito tolerar, até mesmo o intolerável. 

A Índia, sob o domínio Mogol inicial, não viu uma mudança demográfica ou linguística comparável à das Américas, ou sequer próxima. A esmagadora maioria da população permaneceu hindu e as línguas locais continuaram a florescer. Rana Safvi (2017) enfatiza que os mogóis chegaram à Índia como conquistadores, mas permaneceram como indianos, não como colonos. Eles subsumiram sua identidade, bem como a identidade do grupo, com a Índia e tornaram-se inseparáveis ​​dela. Esta assimilação contrasta fortemente com a imposição cultural ocorrida em certos locais das Américas – em especial onde hoje é os Estados Unidos e México – e o gradual desaparecimento das tradições locais. A elite centro-asiática e afegã que conquistou a Índia se esforçou para se tornar nativa, de sua cor da pele, a festivais e costumes, mantendo apenas o persa como língua da corte e o Islã como religião. 

Economicamente, a realidade da conquista pelos Mogóis também difere da conquista europeia. Enquanto em vários momentos as Américas foram sistematicamente exploradas e suas riquezas escoadas para a Europa, os Mogóis reinvestiram na própria Índia. Do século XVI ao XVIII, o império Mogol foi o mais rico do mundo, e transformaram o país que acabaram de conquistar na região mais rica e cobiçada da terra. Este enriquecimento ocorreu devido ao incentivo ao comércio e ao desenvolvimento de infraestrutura, que não mantinha com a Índia uma relação colonial para o enriquecimento de uma metrópole (ate hoje, os monumentos mais famosos da Índia, como o Taj Mahal e Forte Vermelho de Agra, uma cidade palatina, são parte deste legado. Os muçulmanos não exploraram o continente para deixar o Uzbequistão nativo mais rico).

Taj Mahal, construído entre 1631–1653

O filho de Babur, Humayun, continuou a política de tolerância religiosa de seu pai, embora seu reinado tenha sido conturbado. Sri Ram Sharma, em The Religious Policy of the Mughal Emperors, observa que Humayun “seguiu o caminho da menor resistência, o sistema já em voga”. Essa política de menor resistência implicava a não imposição do Islã aos não-muçulmanos. Babur por último aconselhou Humayun a administrar a justiça de acordo com os costumes de cada religião, evitar o sacrifício de vacas, não destruir os templos e santuários de nenhuma comunidade obediente à lei e ignorar as dissensões dos xiitas e dos sunitas.

O neto de Babur, Akbar I, é talvez o exemplo mais notável da política de tolerância religiosa Mogol, foi mais além. Seu reinado é considerado um divisor de águas. Sharma (1940, p. 30) escreve sobre sua ascensão: “O reinado de Akbar constitui a linha divisória entre os antigos e os novos métodos de governo que ele tornaria tão bem-sucedidos”. Akbar herdou um império diverso e buscou consolidá-lo através de uma política de inclusão.

A política de Sulh-i-Kul (Paz Universal) de Akbar é central para entender sua abordagem. Ele buscava harmonia e unidade entre as diversas fés do império. Nesse sentido, uma das medidas mais significativas de Akbar foi a abolição da jizya, o imposto sobre não-muçulmanos, demonstrando sua tolerância religiosa ia até mesmo a revogar a aplicação de alguns aspectos do Islã. Sharma (1940, p. 36) detalha que a abolição da jizya em 1564 “foi um ponto de virada na história do domínio muçulmano na Índia”, pois simbolizava o fim da diferenciação religiosa oficial. 

Akbar também promoveu ativamente o diálogo inter-religioso. Ele criou o Ibadat Khana (Casa de Adoração), onde eruditos de diferentes religiões – muçulmanos, hindus, jainistas, zoroastristas e cristãos – debatiam questões teológicas. Além disso, como parte da política religiosa dos Mogois, Akbar nomeou estudiosos hindus e jainistas como seus conselheiros. 

O imperador mogol Akbar é visto realizando uma assembleia religiosa no Ibadat Khana (Casa de Culto). Dois missionários jesuítas em vestes pretas são identificados como Rudolfo Acquaviva e Francisco Henriques. Ilustração do Akbarnama, pintura em miniatura de Nar Singh, c. 1605 d.C.

A tentativa de Akbar, neto do conquistador Babur, de criar uma nova fé sincrética, o Din-i-Ilahi (Fé Divina), embora não tenha tido muitos adeptos, demonstra sua busca por uma base comum entre as religiões para que chegassem num entendimento mútuo – em que pese esse tipo de iniciativa gere mais resistência do que bons frutos na prática (por motivos óbvios). Assim,  para desenvolver uma política religiosa inclusiva, Akbar buscou combinar as virtudes do hinduísmo, islamismo, cristianismo e jainismo. Embora controverso e sem sucesso, o Din-i-Ilahi reflete o espírito de experimentação e tolerância de Akbar, algo muito distinto da imagem hoje vendida sobre os mogóis como se os séculos de domínio islâmico na Índia houvessem sido um bloco monolítico marcado pela intolerância e opressão, como inventa o movimento Hindutva.

Além das políticas religiosas, Akbar promoveu uma cultura de integração, inclusive incentivando a tradução de escritos hindus clássicos, como o Ramayana e o Mahabharata. A política de Akbar de incluir hindus, especialmente Rajputs, na administração e no exército do império também foi crucial. Antes mesmo de Akbar, Babur já havia nomeado hindus para sua administração. Os hindus Rajputs receberam cargos importantes nas forças armadas sob a política religiosa dos Mogois. Akbar expandiu enormemente essa prática que iniciou com Babur.

Voltando brevemente ao mito do “bloco monolítico islâmico na Índia”, Sharma (1940), destaca a diferença fundamental na natureza do estado Mogol em comparação com o governo do Sultanato anterior. Enquanto o Sultanato de Delhi teria se baseado na distinção entre muçulmanos e hindus, os Mogóis, especialmente sob Akbar, moveram-se para um conceito mais inclusivo de governança, onde a lealdade ao imperador transcendia a afiliação religiosa. Com isso podemos observar que nem mesmo governos islâmicos são totalmente iguais, tanto no passado quanto no presente, sendo tanto a Índia quanto Al-Andalus exemplos históricos disso. A realidade é muito mais complexa do que caixinhas ideológicas e binárias podem comportar.

Dando continuidade, a discussão sobre massacres brevemente mencionada no começo do texto também é pertinente aqui. Enquanto o massacre de Cholula é um evento central na narrativa da conquista do México, classificado como genocídio por Braun (2023), as conquistas de Babur, embora violentas como qualquer guerra, e Babur costumava fazer torres com cabeças de inimigos, não são caracterizadas por massacres sistemáticos de populações civis pagãs não militares. No Baburnama, Babur relata, por exemplo, após a batalha de Chanderi que “uma torre de crânios dos infiéis foi erguida na colina ao nordeste de Chanderi”. Esse ocorrido, contudo, foi durante a guerra contra combatentes e não uma política de extermínio religioso de civis, como alguns propagandistas tentam vender nos dias de hoje.

Exemplo em miniatura representando uma torre de crânios sendo construída com os restos mortais dos soldados e apoiadores de Hemu após a Segunda Batalha de Panipat durante o governo de Akbar.

Em contraste com a “dinâmica da submissão”, para pegarmos emprestado o termo utilizado por Braun (2023) ao descrever as ações espanholas, visando impor dominação política, econômica e cultural através de massacres, os Mogóis, especialmente Babur e Akbar, buscaram uma integração dos nativos e com os nativos, isto é, buscaram integrar os povos locais na estrutura do governo e eles mesmos se “indianizarem”. Em artigo publicado na Annals of Social Sciences and Perspective destaca que “os imperadores Mogóis sempre incentivaram os não muçulmanos nos serviços Mogol. Eles promoveram a literatura e a música, a arte e a cultura hindi-sânscrita.” 

Os conquistadores, imbuídos de um fervor religioso e da crença na superioridade de sua fé, frequentemente destruíam templos, ídolos e artefatos sagrados dos povos nativos. Harald E. Braun, em sua análise sobre os massacres na conquista espanhola, aponta que um dos objetivos era destruir ou diminuir significativamente as lideranças políticas, religiosas e militares da comunidade alvo. A substituição das estruturas religiosas indígenas por igrejas católicas era uma manifestação física dessa dominação. 

A violência empregada pelos conquistadores, como o massacre de Cholula descrito pelo próprio Cortés, não era apenas uma tática militar, mas também servia para incutir o medo e facilitar a aceitação da nova ordem religiosa e política. O resultado dessas políticas foi uma catástrofe demográfica para as populações indígenas, causada por doenças, guerras e exploração. A perda de suas terras, de sua autonomia política e de suas referências culturais e religiosas foi quase total em muitas regiões. Diferentemente das Américas, a Índia sob os primeiros Mogóis não viu uma tentativa sistemática de desmantelar o hinduísmo, que continuou sendo a religião da vasta maioria da população.

Hoje em dia, entretanto, existem revisionistas dos dois lados: (i) os que buscam reabilitar as conquistas no continente americano, como Cristian Iturralde [3], autor que conquistou certa fama no meio católico brasileiro, e (ii) os que visam demonizar o período islâmico na Índia, inclusive com falsificações históricas, como é o caso da mesquita Babri, construída pelo próprio Babur. A mesquita foi atacada e demolida por uma multidão nacionalista hindu em 1992 – o que desencadeou violência comunitária em todo o subcontinente indiano – sob a alegação de que ela havia sido construída sobre um templo hindu dedicado a Rama, um dos avatares do deus Vishnu. Nenhuma evidência arqueológica foi encontrada para sustentar tal alegação, mas mesmo assim a mesquita foi demolida por uma turba raivosa e hoje em dia não é raro vermos casos similares onde extremistas hindus afirmam que determinada mesquita foi construída sobre algum templo hindu sem qualquer evidência.

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Mesquita Babri em fotografia do século XIX

Para finalizarmos, a comparação entre as conquistas de Hernán Cortés e Babur revela que o “e se” da conquista muçulmana das Américas não pode ser respondido com uma simples equivalência, menos ainda com uma demonização da conquista islâmica por conta do preconceito anti-islâmico. Enquanto a conquista das Américas resultou em um padrão de genocídio, imposição cultural e religiosa, e exploração econômica que transformou radicalmente o continente, a conquista Mogol da Índia, particularmente sob Babur e Akbar, seguiu um caminho distinto. Quando os espanhóis saíram do México, ele falava espanhol, era completamente católico, e sua elite branca. Quando os mogóis terminaram na Índia, eram eles que falavam sânscrito, o subcontinente possuía uma ínfima minoria muçulmana e eles eram tão pretos quanto os indianos das castas mais baixas, como os nativos. A situação foi tal, que no motim anti-britânico de 1857, os hindus tentaram recriar o Império Mogol contra a Inglaterra. Baseados na tolerância religiosa, na assimilação cultural e no reinvestimento econômico, os Mogóis construíram um império que, embora estabelecido pela força como qualquer outro, permitiu a coexistência e a continuidade das tradições nativas. Nem mesmo períodos de maior “intolerância”, como costuma ser caracterizado o reinado de Aurangzeb hoje em dia, podem ser comparados com o ocorrido nas Américas. A Índia de hoje, com sua esmagadora maioria hindu e sua rica diversidade linguística e cultural é um testemunho dessa diferença histórica fundamental.

Notas

[1] “Y así por esto como por las señales que para ello veía, acordé de prevenir antes de ser prevenido, e hice llamar a algunos de los señores de la ciudad diciendo que les quería hablar, y metilos en una sala, y en tanto hice que la gente de los nuestros estuviese apercibida, y que en soltando una escopeta diesen en mucha cantidad de indios que había junto al aposento y muchos dentro en él. Así se hizo, que después que tuve los señores dentro en aquella sala, déjelos atando, y cabalgué, e hice soltar la escopeta y démosles tal mano, que en pocas horas murieron más de tres mil hombres”

[2] Temos ciência das críticas feitas a Bartolomé de Las Casas e eventuais “exageros” em suas cartas, por isso optamos por citá-lo apenas quando encontramos respaldo em obras acadêmicas modernas, como o The Cambridge World History of Genocide.

[3] O livro de Iturralde popularizado no Brasil foi o “A Inquisição: Um Tribunal de Misericórdia”, uma péssima tentativa de tentar reabilitar o Tribunal do Santo Ofício. Para que o leitor tenha uma ideia, esse livro do Iturralde consegue ser refutado pelas próprias referências que nele mencionadas, como as obras de Bartolomé Bennassar e A.S. Tuberville, sendo que esse último chega a chamar de “tolos” os apologistas do Santo Ofício.

Referências

BABUR. The Baburnama: Memoirs of Babur, Prince and Emperor. Translated, edited, and annotated by Wheeler M. Thackston. Introduction by Salman Rushdie. New York: Modern Library, 2002.

BRAUN, Harald E. Genocidal Massacres in the Spanish Conquest of the Americas: Xaragua, Cholula and Toxcatl, 1503–1519. In: The Cambridge World History of Violence, vol. III: AD 1500 – AD 1800, ed. R. Antony, S. Carroll and C. Dodds Pennock. Cambridge University Press, 2023.

CONFLICT Of Religion And Faith! An overview of the religious policies of the Mughal emperors, mainly Akbar’s sulh-e-kul policy of religious tolerance and coexistence between Hindus and Muslims. Testbook. Disponível em: <<https://testbook.com/ias-preparation/religious-policies-of-mughals#:~:text=Babur%20followed%20the%20Hanafi%20school,religion%20freely%20during%20his%20rule.>>. Acesso em: 02 de junho de 2025.

GRANDIN, Greg. America, América: A New History of the New World. Pengui Press, 2025.

KANWAL, Fariha; ALI, Fatima. Mughal Rulers’ (1526-1707) Religious Tolerance Policy and its Impacts on the Society of Sub-Continent. Annals of Social Sciences and Perspective, v. 1, n. 2, p. 117-125, Dec. 2020..

SAEVI, Rana. No, Mughals didn’t loot India. They made us rich. DailyO. Disponível em: <<https://www.dailyo.in/politics/mughals-contribution-indian-economy-rich-culture-tourism-british-19549>>. Acesso em: 02 de junho de 2025.

SHARMA, Sri Ram. The Religious Policy of the Mughal Emperors. Bombay: Asia Publishing House, 1940.

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