Poucas coisas parecem mais contraditórias do que a imagem de um judeu nazista. Dizê-lo chega a parecer o ponto mais baixo da crueldade e do insulto. E, de certa forma, é mesmo. Porque a memória do Holocausto, ainda bem, permanece para nós como algo odiento e repugnante, e igualar vítimas e algozes por si só também. Por outro lado, há um problema nesse conceito, o de pensarmos que as práticas de extermínio em massa, de segregação, de apartheid só são “nazistas” quando são exatamente iguais, na forma, àquelas praticadas pela Alemanha hitlerista. Ou seja, pra ser nazista, tem que “parecer nazista”, isto é, grandes marchas, símbolos enormes, líder carismático. No entanto, não é à toa que Hannah Arendt coloca as origens dos campos de extermínio não na Europa, ou nos gulags, mas na experiência colonial africana, sendo o Congo belga de Leopoldo II – com 20 milhões de mortos – o exemplo mais gritante, o que também será atestado por Mbembe em “Necropolítica”. Por isso que quando analisamos historicamente o movimento sionista e o seu desenrolar pós 1948, juntamente com as políticas de segregação aplicadas pelo Estado de Israel contra a população palestina, e principalmente com o genocídio em Gaza, dizer que Israel desenhou-se como um Estado “judaico-nazista” não parece improvável. E uma das vozes que reverberou essa tese foi o judeu israelense e sionista convicto Yeshayahu Leibowitz.
Yeshayahu Leibowitz (1903-1994) foi uma das figuras intelectuais mais provocativas e controversas do judaísmo moderno, combinando uma rigorosa ortodoxia religiosa com uma crítica implacável às políticas do Estado de Israel. Nascido em Riga, Letônia, mudou-se para a Palestina em 1935, onde se tornaria professor na Universidade Hebraica de Jerusalém. Judeu ortodoxo, para ele, o judaísmo não era uma religião étnica ou nacional, mas um sistema teocêntrico absoluto onde Deus transcende completamente a experiência humana. Rejeitava qualquer tentativa de instrumentalizar a religião para fins políticos ou nacionalistas, insistindo que o cumprimento da Halachá (lei judaica) deveria ser motivado exclusivamente pelo amor e temor a Deus, não por considerações históricas, culturais ou políticas. Daí, portanto, o seu desprezo pelo Muro das Lamentações, ou pela oração suplicante, a qual ele assemelha à blasfêmia. Não acreditava que o cumprimento da Torá fosse algo que trouxesse recompensas ao fiel, nem nessa vida ou na vindoura. Essa visão de mundo acabava se opondo à de muitos judeus que viam na formação do Estado de Israel um caminho para a vinda do Messias. Para ele o Messias não viria, mas está vindo todos os dias.
Yeshayahu Leibowitz | Wellcome Collection
Foi seu zelo religioso que o fez crítico ao sionismo. Leibowitz distinguia rigorosamente entre religião e nacionalismo – de acordo com uma matéria do New York Times de 1993, a separação entre Estado e sinagoga era pra proteger a Sinagoga. Argumentava que o judaísmo autêntico exigia a separação total entre fé e poder temporal, criticando tanto o sionismo religioso quanto o secular por confundirem categorias espirituais com projetos políticos. Ou seja, para ele a base da Fé é a Torá, e o apelo do sionismo religioso e político à terra soava quase que uma idolatria. E muito embora ele acreditasse na necessidade de uma pátria judaica na Eretz Yisrael, a forma com que o Estado de Israel se desenhava apontava para caminhos totalmente antagônicos à Halachá. Foi tendo essa base teológica que surgiu o termo “judeu-nazista” em seu discurso.
No entanto, e muito embora ele tenha sido o mais estridente crítico a popularizá-la, essa comparação não foi inventada por ele. Em 1948, quando da criação do Estado de Israel, Hannah Arendt e Albert Einstein, ambos judeus, escreveram uma carta ao New York Times sobre o recém partido recém fundado “Tnuat HaHerut”, liderado por Manachem Begin: “Entre os fenómenos políticos mais perturbadores dos nossos tempos está o surgimento, no recém-criado Estado de Israel, do ‘Partido da Liberdade’ (Tnuat HaHerut), um partido político intimamente semelhante na sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazi e fascista”. Em novembro de 1948, Eliezer Peri, editor do jornal Al Hamishmar, do Mapam, recebeu uma carta descrevendo um massacre em Al-Dawayima. Benny Morris estimou que “centenas” foram mortas . O Ministro da Agricultura, Aharon Cisling, referiu-se a uma carta que recebera sobre as atrocidades, declarando: “Não consegui dormir a noite toda… Isso é algo que determina o caráter da nação… Judeus também cometeram atos nazistas.” Comentários semelhantes foram feitos por Yosef Nahmani, um oficial sênior da Haganá. Ele ficou chocado com a crueldade das tropas israelenses para com os aldeões árabes. Ele descreveu como, em Safsaf, os aldeões hastearam a bandeira branca, mas 60 a 70 homens e mulheres foram massacrados e questionado: “Onde aprenderam uma conduta cruel como a dos nazistas?”. Segundo um oficial, “os mais ansiosos eram aqueles que vinham dos campos de concentração”.
Al-Dawayima, 1933 | Governo do Mandato Britânico
Foi quando Leibowitz presenciou a tomada de terras palestinas durante a Guerra dos Seis Dias em 1967 que ele realmente cunhou o termo “judeu-nazista”. Se, como foi dito acima, havia o zelo religioso, por outro as incongruências formadas pela ocupação israelense já se desnudavam diante dele. Uma das percepções claras era a da inferioridade populacional judaica frente à enorme massa árabe Palestina que já habitava a terra. Além disso, a tomada de terras e a expulsão dessa população, fora as práticas pregressa de grupos terroristas como o Haganá e Irgun, criaria um estado de tensão perene que acabaria levaria a essa minoria a subjugar e explorar sempre essa maioria. Em um ensaio de 1968 intitulado “Os Territórios”, Leibowitz alertou sobre um futuro sombrio:
“Do ponto de vista social, não demorará muito para que não haja mais trabalhadores ou agricultores judeus. Os árabes se tornarão a classe trabalhadora, enquanto os judeus ocuparão cargos de gerentes, supervisores, funcionários e, principalmente, policiais com deficiência auditiva. Um Estado que governa uma população hostil de 1,4 a 2 milhões de estrangeiros inevitavelmente se tornará um Estado Shin Bet , com tudo o que isso implica para o espírito da educação, a liberdade de expressão e pensamento, e o sistema democrático. A corrupção inerente a todo regime colonial se apegará ao Estado de Israel. Sua administração estará ocupada, por um lado, em reprimir uma rebelião árabe e, por outro, em subornar colaboradores árabes. Há um perigo real de que as Forças de Defesa de Israel (IDF) – que até então eram um exército popular – se degenerem em uma força de ocupação e que seus comandantes, que se tornarão governadores militares, se assemelhem a seus homólogos de outras nações.”
Essa crítica também se aplicava a figuras importantes que hoje formam o panteão do Estado de Israel, como o primeiro-ministro David Ben-Gurion, ao qual ele chamava de “catástrofe sobre o povo judeu”. E a cada nova investida das Forças de Defesa, mais ele se desiludia com o Sionismo como um todo, vendo-o sua atuação como uma corrupção moral dos princípios judaicos. Isso o levou a fazer campanhas para que soldados israelenses não servissem em territórios ocupados, também o fez reiterar que “a justiça de Israel” poderia abrir mão das Leis de Nuremberg, ou que os nazistas fossem absolvidos. Apoiou a retirada unilateral das tropas israelenses dos territórios ocupados e via, acima de tudo, o Estado de Israel, como ele é: um Estado moderno que deve ser julgado como tal, sem o espelho religioso ou messiânico que se lhe atribui.
A obra de Leibowitz é intrigante não só pela sua honestidade e pelos aspectos específicos de sua teologia, mas também porque lança luz sobre os perigos de um nacionalismo que mistura os traumas nacionais – que não foram restritos ao povo judeu, uma vez que negros, homossexuais, ciganos e diversas minorias foram vítimas do Holocausto –, com os anseios religiosos. E é nesse sentido que a gente deve olhar para uma verdade que as escrituras judaicas nos dizem “Um abismo chama outro abismo”. Nietzsche parafrasearia essa verdade dizendo: “Quem com monstros luta cuide para que, ao fazê-lo, não se torne também um monstro. E, se tu olhares muito tempo para um abismo, o abismo também olha para ti.”. Em 2025, Binyamin Netanyahu chamou aqueles que desejavam uma Palestina livre de “nazistas”; quando a UE endureceu o tom contra Israel pelo genocídio em Gaza, ele se referiu a ela como “antissemitas”. Uma das definições da IHRA (Aliança Internacional pela Memória do Holocausto) define como antissemitas quaisquer comparações do sionismo com o regime nazista. Aqui no Brasil, o PL-472/2025 de autoria do deputado federal Eduardo Pazuello, tenta emplacar essa tese, criminalizando quem compara o sionismo ao antissemitismo e, logo, ao racismo. Uma falácia. A grande questão que fica é: sob qual ótica se devem julgar as ações e os discursos que condenam milhões de palestinos a uma vida de privações, tomadas de terra e morte constantes? É nesse aspecto que as críticas feitas por Leibowitz são atuais. Ao tornar qualquer crítica a si como “antissemitismo”, o Sionismo faz o que todo regime ultranacionalista faz, sequestra a identidade de um povo inteiro para a sua instrumentalização política. E é exatamente isso que se condena ao condenar o Sionismo.
Referências
BEAST RABBAN. Judeonazism: Jewish scholar Yeshayahu Leibowitz’s term for Israeli fascism. 23 out. 2018.
CHOMSKY, Noam. Noam Chomsky’s website. 14 nov. 2018.
ELECTRONIC INTIFADA. Warnings of Israeli fascism should be heeded, not condemned. 2018.
ESQUERDA ONLINE. Eu achava que o termo “judaico-nazista” era excessivo; eu não acho mais. 22 fev. 2024.
HAARETZ. The Mengele Squad. 01 out. 2010.
HAARETZ. I was once shocked by the term “Judeo-Nazi”. 06 mai. 2025.
MIDDLE EAST MONITOR. Chomsky echoes prominent Israeli warns of the rise of Judeo-Nazi tendencies in Israel. 12 nov. 2018.
MONDOWEISS. Holocaust service Israel. 18 dez. 2017.