A tortura israelense provocou o 7 de outubro

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Por muitos anos vivi próximo da prisão de Megido, no norte de Israel, onde novas gravações de guardas israelenses torturando palestinos em massa foi publicado pelo jornal israelense Haaretz. Passei pela prisão de Megido em centenas de ocasiões. Com o tempo, passei a negligenciar os prédios cinzentos e baixos, cercados por torres de vigia e arame farpado.

 

 

Há várias prisões como Megido no norte de Israel. É onde os palestinos vão parar após depois de serem arrancados de suas casas, geralmente no meio da noite. Israel e a mídia ocidental dizem que estes palestinos foram “presos”, como se Israel estivesse aplicando algum tipo de procedimento legal legítimo sobre os sujeitos – ou melhor, objetos – oprimidos de sua ocupação. Na verdade, esses palestinos foram sequestrados.

As prisões são invariavelmente localizadas próximas às principais estradas de Israel, presumivelmente porque os israelenses pensam ser reconfortante saber que os palestinos estão sendo encarcerados em números tão grandes. (Como observação, devo mencionar que a transferência de prisioneiros do território ocupado para o território do ocupante é um crime de guerra, mas deixemos isso de lado.)

Mesmo antes das detenções em massa dos últimos 11 meses, a Autoridade Palestina estimava que 800 mil palestinos – ou 40% da população masculina – já haviam passado por uma prisão israelense. Muitos sequer foram acusados de algum crime, nem foram julgados. Não que isso fizesse alguma diferença – a taxa de condenação de palestinos nos tribunais militares israelenses é de quase 100%. Parece que não existem palestinos inocentes.

Na verdade, a prisão é uma espécie de rito de passagem aterrorizante que tem sido suportado por gerações de palestinos, uma exigência da burocracia que administra o sistema de ocupação e apartheid de Israel.

A tortura, mesmo de crianças, tem sido rotina nestas prisões desde que a ocupação começou, 60 anos atrás, como grupos israelenses de direitos humanos têm documentado regularmente.

O encarceramento e a tortura dos palestinos servem a vários objetivos de Israel. Elas destroem o espírito individual e coletivo dos palestinos. Traumatizam de geração em geração, criando medo e suspeição. Também ajuda a recrutar uma grande turma de informantes e colaboradores palestinos que trabalham secretamente com a polícia secreta de Israel, o Shin Bet, para frustrar as operações de resistência contra as forças ilegais de ocupação de Israel.

Este tipo de resistência palestina, devemos notar, é especificamente permitida de acordo com a lei internacional. Em outras palavras, o que o Ocidente denuncia como “terrorismo” é, na verdade, permitido sob os princípios que o próprio Ocidente estabeleceu após a Segunda Guerra Mundial. Paradoxal, para dizer o mínimo.

A humilhação e o trauma sistematicamente infligidos a essas centenas de milhares de palestinos e à sociedade palestina em geral – e a completa falta de preocupação da chamada “comunidade internacional” ou, pior, sua cumplicidade – alimentaram de maneira inevitável o crescente extremismo religioso em partes de uma sociedade palestina que antes era, em grande parte, secular.

Se não há justiça ou reparação a ser oferecida pelas instituições internacionais criadas por um Ocidente que ao mesmo tempo alardeia seu secularismo e ostenta seus valores cristãos, os palestinos concluem, então, que talvez possam encontrar justiça – ou ao menos vingança – não por meio de “negociações” inúteis e manipuladas, mas através de um compromisso maior com a resistência violenta realizada em nome do Islã.

Isso explica a emergência do Hamas no final dos anos 1980 e sua implacável popularização. A militância islâmica intransigente do Hamas contrasta com o nacionalismo secular mais conciliador do Fatah, há muito tempo liderada por Mahmoud Abbas. O apoio ao Hamas era algo que Israel fez questão de incentivar. Israel entendia que o islamismo político desacreditaria a causa palestina aos olhos dos ocidentais e fortaleceria ainda mais os laços do Ocidente com Israel.

Mas o sistema israelense de tortura – seja em prisões “normais” como Megido ou na grande prisão a céu aberto que Israel fez de Gaza – também levou a uma maior determinação de grupos como o Hamas de se libertarem através da violência. Se Israel não podia ser convencido através da razão, entendendo apenas a linguagem da espada, então era nessa linguagem com que os palestinos falariam com Israel. Essa foi precisamente a lógica por trás das atrocidades do 7 de outubro.

Se você ficou horrorizado com o 7 de outubro, mas não está mais horrorizado com o que Israel tem feito aos palestinos por mais de meio século em suas prisões, ou você está em profundo estado de ignorância – o que é pouco surpreendente tendo em vista a falta de cobertura midiática do governo despótico de Israel sobre os palestinos – ou em profunda negação.

Se você não consegue ver a relação causal entre os abusos bárbaros cometidos contra palestinos de geração em geração e os crimes cometidos no 7 de outubro, então você não possui entendimento sobre a natureza humana. Você não tem consciência nenhuma acerca de como você agiria se você, seu pai e seu avô tivessem sido torturados numa prisão israelense, um trauma transmitido de geração em geração de forma pouco diferente da cor do cabelo ou da constituição física.

As cenas gravadas em Megido. As imagens de homens desnutridos, destruídos pelas agressões nas prisões. O desaparecimento de centenas de médicos nas câmaras de tortura israelenses. O vídeo de um homem palestino sendo estuprado por guardas prisionais israelenses. As constatações de organizações israelenses e internacionais de que tudo isso ocorre de forma sistemática. Os horrores estão diante dos nossos olhos. Mas muitos de nós desviamos o olhar, voltando ao pensamento mágico da infância, em que, ao cobrirmos os olhos, o mundo desaparece.

Os horrores do sistema prisional de Israel não são novos. Eles ocorrem há décadas. A novidade é que Israel intensificou o abuso. Agora, se deleita em atrocidades que antes escondia como um segredo obscuro.

Israel está perdido. Está afundado num buraco negro e genocida. A questão é, você vai se deixar ser engolido pelo mesmo vazio? Você vai continuar cobrindo seus olhos? A tortura se encerra porque você prefere não ver ela?

Fonte: Jonathan Cook | Substack – Traduzido por Vinícius Tanure.

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